sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


NAQUELA TARDE DE VERÃO EM IPANEMA

Às vezes fico tomando uma cachacinha no Bar do Manéu e deixo a mente vagar por aí. Dessa vez ela rumou para os anos 60.

Era uma tarde ensolarada no Rio de Janeiro. Soprava uma brisa que acariciava, um cheirinho delicioso de maresia. Devia estar fazendo uns 30º mas naquela época ainda tínhamos camada de ozônio, portanto, sem protetor solar. Nessa tarde as ondas estavam ótimas e peguei vários “jacarés”. Estamos em 1962. Ipanema.

Saí da praia e caminhei pela Rua Montenegro, chegando ao bar Veloso. Sentei numa mesa com uns amigos. Pedi uma cachaça envelhecida em jequitibá e uma água com gás. Meu amigo que sentava à minha esquerda e tomava uísque, disse: Aroldinho, você tá certo. A gente deve valorizar nossas coisinhas. O outro amigo à minha direita deu um sorriso. A menina sentada à minha frente fumava distraída e o garçom colocava mais uma pedrinha de gelinho no uisquinho do meu amiguinho.

Entra uma menina de maiô de duas peças. Não se esqueçam: estamos em 62.
Compra cigarros pra mãe dela isso soubemos depois - e vai embora sem olhar pros lados. Nem era tão bonita assim. Tá bom, bonitinha. Mas meu amigo do uísque acha todas as mulheres do mundo lindas, sempre pedindo perdão às feias... Ele dizia: Que coisinha mais lindinha...
O meu amigo da direita, embora estivesse ocupado com o cabelo que lhe caía nos olhos, teve tempo de acrescentar: Uma graça.

Ciumenta, a amiga que sentava à nossa frente fez uma cara feia e ameaçou ir embora. Eu, impedindo, segurei na sua mão e disse: Não liga não. Ela só vem por aqui e passa. Ou compra cigarros pra sua mãe ou vai na costureira.

A gente estava sentado perto do banheiro, numa mesinha discreta, com o caixa bem próximo.

De repente, volta a menina, aquela do maiô de duas peças e vai direto ao caixa. Tinha esquecido o troco: 5.000 cruzeiros.
Era uma nota ainda nova, pois tinha sido lançada em 1961 pela Casa da Moeda do Brasil. Era conhecida como a nota do índio por trazer estampado o rosto de um primeiro habitante de nossas terras. Só que com a inflação ela pulou de 5 para 5.000 cruzeiros.

Ela embolsou a grana e foi embora. Mas conseguiu chamar de novo nossa atenção.
Meu amigo da esquerda falou: Que coisa mais linda... O amigo da direita: Mais cheia de graça... E eu completei: É ela menina que vem e que passa...
Nesse momento, a menina que sentava à nossa frente apagou o cigarro, deu um gole no chope, tirou a bolsa do encosto da cadeira e falou: Ah, por que tudo é tão triste...?
Levantou-se e foi embora.

O resto? É história.

VAI TOMAR NA COZINHA


...Encha o vidro com alho branco descascado. Coloque duas colheres de sal e chacoalhe o vidro para o sal se espalhar. Deixe descansar por um dia para desidratar. O alho vai soltar um pouco de água. Jogue a água fora depois de 24 horas. Deixe o alho descansar dentro do vidro por mais três dias sem mexer....Depois...”

Eu anotava rapidamente a receita de alho curtido que Morais, o chef de cuisine do Bar do Manéu, me passava. Tinha pressa. Precisava preparar essa iguaria até a semana seguinte e o processo todo leva doze dias. Bota sal, tira, coloca vinagre, lava, repousa no azeite e por aí vai. É meticuloso. Exige paciência.
Esse alho curtido é pra ser comido como petisco e acompanhado de uma cachaça ou uma cerveja boçalmente gelada, é pra ser apreciado de joelhos e mãos postas. Já sei, você tá pensando que fica aquele gosto forte de alho, né? Que nada... O processo que o Morais me ensinou tira todo o ardor do alho, fica só a essência celestial...Se você quiser a receita toda, me passa um e-mail que eu te digo.

Gosto de batucar umas panelas com colher de pau. Vou da feijoada à indiana, passando pelo bobó de camarão e rabada, fazendo um pit stop no cozido e no robalo recheado com mariscos, dando uns petelecos nas pastas árabes e por aí vai minha estrada gastronômica. Abomino miojo e detesto “mixidinho”, comida de preguiçoso.

Muito se fala: cozinhar é uma arte. Concordo. A arte da sutileza dos temperos. A arte das misturas inusitadas. A arte da comida colorida nos tons e sabores certos.

Conheço algumas pessoas que são mestres-cucas na verdadeira acepção da palavra e eu nunca perco uma chance de aprender um prato novo.
Quando morei em Salvador, queria aprender a real muqueca de peixe na fonte, na partitura original. Não tive dúvida, colei numa amiga que é uma pedrada na cozinha. Ela faz de tudo, bem e gostoso.

Papel e caneta, lá fui eu: cebola, tomate, coentro à vontade. Anotava tudo rapidamente e com a letra descabelada. O segredo era o coentro que eu botava com uma modéstia de um padre franciscano e, na verdade, tem que ser com a generosidade que o Malaquias, o melhor garçom do Rio, serve as minhas doses de cachaça. Bastantão.

Nessa mesma parada soteropolitana, entre outras iguarias, aprendi a fazer manteiga de linhaça. Deixa de molho de um dia pro outro, coloca cebola, um dentinho de alho que não tenha cárie e uma pitada Chanel nº5 de sal. Bate tudo no liquidificador, coloca num vidro, sela com azeite, guarda na geladeira. Depois é só passar no pão ou colocar na salada.
Hummm...que delícia, Sil Psi.
Essa manteiga é muito boa para manter as veiotas em dia. Eu disse veiotas, relativo a veias e não velhotas, relativo a “véias”...

Sil Psi é uma amiga mineiríssima que na cozinha só sabe fazer pescado. Mineira cozinhando frutos do mar? Seria o mesmo que gaúcho fazendo uma buchada de bode. Mas é como eu digo: A cozinha é democrática! Nas suas quatro paredes vale tudo! Só não pode pegar e provar a carne da feijoada com a mão porque azeda...

Quem às vezes perde a paciência é o Manéu, dono do bar que leva o seu nome.

Um dia desses, Romerinho, um bebum que de tempos em tempos aparece por lá, tava mais torto que anzol e ficou enchendo o saco do Manéu: Ô, portuga! Ô, portuga! Me fala aí: É verdade que um maratonista português perdeu uma corrida porque parava no sinal vermelho?
Manéu, fingindo que não ouvia, só balançava a cabeça.

E Romerinho insistia: Ô, portuga! Ô, portuga! Me fala aí: É verdade que um português de Coimbra pediu pro patrício aqui do Brasil um papagaio e o daqui mandou uma coruja, e depois de três meses o patrício daqui perguntou: E aí? O papagaio está a falare? E o patrício de lá falou: Falare ainda não está a falare não, mas presta uma atenção...

Romerinho emendou com uma gargalhada, pedindo na sequência ao Manéu: Escuta, portuga, me vê uma garrafinha d´água. Já tô bom de cerveja por hoje.

Eu pensei logo: Ih, vem chumbo grosso aí...
Não deu outra. Romerinho levantou na rede pro Manéu cortar.

O português olhou bem na cara do manguaça e lascou: Ô, gajo, vai tomar na cozinha!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012


É CARNAVAL!


Hoje, quinta-feira, começa oficialmente o Carnaval no Bar do Manéu. Baile à fantasia que antecede o desfile pelo centro da cidade, como rege o regulamento do bloco Corno Sois Tu, que sai do bar pontualmente a qualquer hora...

A banda aos poucos vai se acomodando e Firmino, o maestro, já enxugou cinco cervas e perdeu a baqueta. Mas pra alívio de todos os músicos, ela, a baqueta, tinha rolado e estacionado bem no pé direito de Paulo Ventura, antigo zagueiro do Bangu que encurtou uma promissora carreira por conta de um menisco safado. Mas a baqueta parou na perna boa e o ex-craque teve tempo de mostrar a sua classe. Pisou numa das extremidades da bichinha, levantou com a parte externa do calcanhar e, num salamaleque, entregou de volta a Firmino seu instrumento de trabalho.
Recebeu de volta um beijo de Mirtinha.

Mirtinha, idade ignorada, lembra um samba canção de Nei Lopes que tem um pedacinho que diz: “Era um vulcão, um pedação de mau caminho, tudo isso embrulhadinho num rostinho angelical...” Narizinho arrebitado, sardas no rosto e no corpinho mignon que Moreira, o gozador, sempre lembra e comenta: Ô, Mirtinha, quando você era criança tomava sol de peneira?

Ela, de fantasia de cigana incorporada, lê o “futuro” de Robertinho num baralho enrugado, esquecido e encontrado no Bar do Manéu: Vejo uma reviravolta na sua vida...Você vai finalmente encontrar o amor da sua vida...Mirtinha esticou o “or” de amor até perder o fôlego. Robertinho, com olhar sacana, manda um beijinho de volta, juntando os lábios como o Patolino. Lembra do Patolino, amigo do Pernalonga? Pois é.

Eis que surge Napoleão, com toda a sua pompa, que sobe numa cadeira e anuncia:
“Eu fugi do exílio que me foi imposto na ilha de Elba, fugi dos navios ingleses com seus canhões apontados pro meu peito, com um exército mínimo marchei sobre Paris, nos 100 dias que se seguiram governei a França e agora desembarco na Praça Mauá para o júbilo de vocês!”
Gritos e assovios correm pelo bar e um coro afinado evoca: Viva Napoleão, o rei do sertão!
Napoleão é o Sassá, o erudito. Aquele que sabe tudo. Enverga um uniforme, meio desbotado é verdade, mas com altivez e galhardia, interpreta bem o general francês.

Manéu dos Tremoços, dono do bar e presidente emérito (ou seria honorário?) do bloco Corno Sois Tu, aprecia aquela fuzarca com seu tradicional pano de prato num dos ombros e lápis na outra orelha. Orelha esquerda de quem vem e direita de quem vai...

O pessoal, na maior euforia e excitação, chega com suas fantasias e se confraterniza da maneira mais improvável: Árabes com judeus. Piratas e colombinas. Políticos com polícia. Rubro-negros e vascaínos.

Moreirinha se fantasiou de povo com aquele tradicional nariz de palhaço. Juvenal está fantasiado de senador corrupto com dinheiro saindo de uma pasta 007 que ele carrega embaixo do braço. Os dois, abraçados, entoam sem parar como um mantra: O povo vencido, jamais será unido! O povo vencido, jamais será unido!

Malaquias, o melhor garçom do Rio de Janeiro, se desdobra com os outros gravatinhas-borboleta para atender a todos. Sai um virado! Um escondidinho pra mesa quatro! Quatro chopes preto pro balcão! Uma roupa-velha no capricho! Acelera, Morais!
Coitado...Morais, na cozinha, sua mais que tampa de marmita e se vira ao avesso pra dar conta do recado.

Horácio, aquele que sabe dar nó de gravata porque tem um namorado executivo, que veio fantasiado de Nureyev, com direito a sapatilha e tudo mais, dá piruetas e grand jeté pelo salão.

Mariana Só Toma Chope, travestida de Steve Jobs, confere e-mails no seu celular, enquanto...toma chope.

Zé Mão no Chão ensaia um bailado digno de um mestre-sala, jogando charme para Madame.
Madame...Ex-cafetina da antiga zona do meretrício da Presidente Vargas, na época das francesas e polacas, hoje beirando oitenta pra lá, franze o nariz fazendo charminho e dá um tapa nos beiços com um Drury´s dose dupla.

Com o Bar do Manéu lotadaço, a banda do Firmino afinadíssima na percussão e tinindo nos metais, ataca: “Esse ano não vai ser igual aquele que passou...”.

Magnólia, a manicure mais solicitada do Irajá, fantasiada de esperança e reforçando a mensagem, fala baixinho: Se Deus quiser...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


SALVADOR, SEGUNDO UMA NATIVA DE LÁ

Salvador sempre me causou um certo fascínio. A primeira vez que estive por lá nos anos 70, disse de mim para mim e para todo mundo ouvir: Quero morar aqui. Sei lá...o céu, a comida, o clima, a história da cidade... a magia.

Mas ao longo do tempo e da vida, comecei a ficar intrigado com a passividade baiana diante dos problemas. Parecia que era mais conveniente colocar os problemas embaixo do tapete. Bem escondido e longe do mar pra Iemanjá não ver...

Fascinado e intrigado, em 2010, lá fui morar por um ano inteiro. Essa experiência única eu deixo pra contar pra quem quiser curtir num outro momento porque agora eu estou ocupado em ouvir Fatiminha.

Enquanto eu degustava uma cachacinha especial envelhecida em umburana, chegando a essas ilações sobre Salvador, minha amiga Fatiminha fazia inalações por conta de uma renitente bronquite, aqui, você sabe onde? Vamos lá: um, dois, três! Todo mundo junto! Onde? Onde? Isso!!! No Bar do Manéu. Manéu dos Tremoços.
Quando Fatiminha borrifa com a bombinha seu nariz e começa a mexer nos cabelos, claro que uma coisa de cada vez, lá vem pronunciamento. E não deu outra.

Fatiminha é uma baiana que veio morar no Rio nos anos 80. De raiva, ela partiu de Salvador pra só voltar lá de vez em quando. Hoje mora em Santa Tereza e tem um atelier de pintura. Faz coisas lindas em acrílico. Pelas palavras dela você vai saber por que veio “de raiva”.

Quando ela levanta o tom de voz, todo mundo fica com as orelhas em pé. Antenor dedilhou umas notas como se fosse acompanhamento, mas recebeu um cutucão de Mirinha e uma advertência: Shiu!

(Para um melhor entendimento vou pontuar entre parêntesis, tá bom?)

“Olhe aqui, começou Fatiminha, é uma vergonha! Por isso que eu saí de lá de raiva. O baiano é um povo descarado! Veja! Eles não se desgrudam de ACM!
(Quando ouviu essa sigla, Moreirinha fez três vezes o sinal da cruz)

(Por quê? Todos do bar perguntaram)

“Por quê? Eu digo por quê. Bastou uma grevezinha da Polícia Militar pra esculhambar de vez Salvador. Homicídios, arrastões, saques, assaltos, tiros, pancadarias.”

(Moreirinha cochichou com Jaudério, o massagista: Disseram até que roubaram todos os acarajés do Rio Vermelho... Jaudério não se segurou e caiu na risada e falou: Assim não dá...assim não ...vocês querem me matar de tanto rir...)

Fatiminha continuou agora subindo o tom da voz, como se fosse uma candidata a deputada num palanque na Praça Castro Alves: “É uma putaria!”

( Antenor, ao ouvir a palavra mágica, não pode evitar um acorde sutil no violão e sussurrou para si mesmo: Salve!)

“E a Civil? Cadê a Civil pra garantir os cidadãos? (Continuou a baiana, agora em cima de uma cadeira). “E alguns devem estar falando: Com ACM isso não ia acontecer. Que merda é essa? A gente não precisa de painho nenhum! Precisa que o povo tome as rédeas. Que mostre a sua força. Não adianta mostrar energia só no Carnaval. O que mostra essa situação vergonhosa é que Salvador é uma cidade despreparada. Onde já se viu? Shows cancelados quando a cidade só ganha dinheiro nessa época do ano. Salvador tá mostrando que é um barril de pólvora pronta pra explodir com qualquer peido!”

(Aí não teve jeito. Foi gargalhada geral no Bar do Manéu)

Mas Fatiminha não perdeu a pose e continuou.
“Como uma cidade dessa vai querer bancar jogos da Copa do mundo? Uma cidade sem segurança. Sem Polícia Civil e, se tem, foi desarticulada na época da ditadura porque em Salvador só vale a PM. Olha no Carnaval. Pra cada policial civil na rua tem 670 policiais militares truculentos.”

(Bom, aí eu tenho que concordar. Quando eu estava no Carnaval e vinham aqueles PMs sinistros com cassetete na mão, cutucando quem estivesse na frente deles, eu sempre olhava pro chão pra ver se ninguém tinha se cagado nas calças...)

Dá-lhe Fatiminha!

“Com uma greve da PM, a bandidagem tá à vontade na capital baiana. E vejam vocês. Imaginem. Só imaginem. Imaginem se Salvador tivesse um, eu disse um, Complexo do Alemão antes da ocupação, com a bandidagem dando tiro a torto e a direito. Hein? Me digam? Como ia ser?

Antenor pegou a deixa e mandou o recado com a música de um baiano ilustre:

Eu vou pra Maracangalha
Eu vou
Eu vou de chapéu de palha
Eu vou...

Quá, quá, quá!!! O bar entrou em delírio com a sacada do Antenor. Alguém pegou a baianinha no colo e deu-lhe um beijinho na testa. Aplausos, assovios.

Daqui do meio desse fuzuê, não sei se o Manéu vai me escutar, mas vou tentar: Manéu, solta uma gelada e uma linguinha com cebola!



LAERTE E O WC


Em mais um final de tarde chuvoso no Rio – que verão mais esquisito... - Demerval chega no Bar do Manéu e, com sua voz de barítono profundo e sotaque característico, declara: Ô xente, tá tudo mudado!
E levanta pra todo mundo ler a primeira página do jornal do dia. Não sei se era O Dia ou A Noite...

Eulália, com olhar triste, comenta: Nossa, que tragédia... Teve sobreviventes?
E Demerval, que não é nada sentimental, mandou na lata: Que porra de desastre! Eu tô falando disso aqui, ó! E apontou pruma notícia com direito a foto e tudo.

Vamos explicar. Demerval é um baiano arretado do Recôncavo que, segundo a lenda, seu avô comandava a volante que matou Lampião. Se o cara usa camisa vermelha, pra ele é viado. Mulher sozinha em bar é prostituta. E homem não beija outro nem em despedida de velório, mesmo que a outra parte esteja esticada e durinha no caixão.
Ele seria um homofóbico grau nove. Só não é grau dez porque, falam as más línguas, num dia de bebedeira incondicional, Demerval confessou que já tirou as gordurinhas de umas rodelas de linguiça com garfo e faca. E nesse dia, aos prantos de bêbado, acrescentou: Isso é coisa de boiola...

Muito bem. Vamos em frente. A notícia que ele trazia era sobre a reivindicação do cartunista Laerte em querer frequentar os banheiros femininos.
Laerte, desenhista da safra de Angeli e Glauco e muitos outros, criador de personagens inesquecíveis como Os Piratas do Tietê, resolveu se vestir de mulher e assumir essa postura. São os chamados crossdresser, mas Laerte, nacionalista, se diz travesti mesmo.

Continuando. Demerval deu uma bolacha no jornal e bradou: Pode uma coisa dessa?

A discussão levantou labaredas de paixão.

Moreirinha questionou: Ele é operado? Jogou fora o bilau? Diante da negativa, ele mandou: Se é assim, tem que valer pra todo mundo! Banheiro feminino tem que ser liberado pra qualquer homem!

Público ou privada? Perguntou o irônico Robertinho, arrancando risos e assovios.

Antenor, com olhar de mormaço, abraçado ao seu violão e cigarrinho no canto da boca, já se imaginou num banheiro feminino jogando um “psilone” em algum ouvidinho desprevenido: Não liga não meu amor, eu só tô aqui pra lavar as mãos pra tirar o resto de perfume da minha ex-amada. Tens alguma coisa pra fazer hoje à noite?

Moreirinha, com sua colocação, jogou gasolina na fogueira. E tome falatório.

Magnólia, uma manicure do Irajá, sapecou: Ih, quem vai gostar é a minha colega lá do salão. Ela era Paulão, sabe, mas depois que colocou bundão, uns peitões e fez alisamento...hummm...a metida só quer ser chamada de Priscila Gabrielle.

Manéu, solta um rabo de galo pra comemorar, pediu Zé Mão no Chão e o português retrucou: Sai fora, ô gajo, aqui o galo não solta o rabo, não! Gargalhada geral.

Jaudério, o massagista que nas horas sem cliente é assistente de um consultório dentário em Del Castilho, não aguentava mais de tanto rir daquela história toda e sempre pontuava cada colocação com um: Assim não dá...assim não dá...vocês querem me matar de tanto rir.

No auge da discussão, Horácio, que sabe dar nó de gravata porque tem um namorado executivo, levantou e falou com o dedo em riste: E daí? E daí?

Antenor, com seu violão de sete cordas afinado em lá e com a sua voz de caverna, não perdeu a deixa e já encaixou um famoso samba-canção do Miguel Gustavo:

Proibiram que eu te amasse
Proibiram que eu te visse
Proibiram que eu saísse
Ou perguntasse a alguém por ti

Proíbam muito mais
Preguem avisos
Fechem portas
Ponham guizos
Nosso amor perguntará:
E daí, e daí?

O bar todo, brindando, terminou com um tremendo lalari-larará.




O LIVRO DO BONI


Fazia a faxina anual na minha estante quando, de repente, caiu um livro bem no dedão do meu pé direito. O livro era grosso. Era o Livro do Boni. Até chequei a capa duas vezes pra ver se não tinha quebrado nenhum dos dentes do Boni, tamanha foi a queda...O meu dedão inchado, tudo bem, mas restaurar um daqueles dentes tão perfeitos da capa do livro, eu teria que empenhar minhas três fazendas e ainda teria que vender meu Lamborghini para o fotógrafo Antonio Guerreiro refazer a foto.

No Natal é a única época do ano em que o Bar do Manéu fica meio às moscas. Aliás, até elas ficam meio tristes por falta de clientes pra provocar e levar de volta alguns tabefes.
Uns clientes ficam em casa, fingindo que têm família pra comemorar o nascimento de “Nosso Senhor Jesus Cristo que morreu na cruz para nos salvar...”, como diz um pedacinho do Dia da Criação do maior poeta/pinguço do Brasil, Vinícius de Morais. Outros, realmente, vão comer castanhas com filhos e agregados. E têm aqueles que viajam pra Ribeirão Preto, como foi o meu caso. Trouxe de lá, misturado ainda na saliva, o gosto de quitutes maravilhosos de uma ceia feita no capricho pela dona Inês e, debaixo do braço, de presente, bem colado ao sovaco, O Livro do Boni. Aquele lá de cima que caiu no meu dedão.

Aproveitei que nessas semanas de entressafra o Bar do Manéu estava meio vazio, escolhi uma mesa no cantinho, pedi uma cachacinha mineira, torresminho e parti pra dentro do livro.
Quando ainda estava na parte “... e aí eu corria entre os laranjais da fazenda do meu avô...” - toda biografia começa assim- sentou-se ao meu lado, Sassá, o homem mais feio do Velho Oeste, e com um humor ferino e certeiro. Ele mesmo se auto-sacaneia. Quando algum bebê de colo chora ao seu lado, ele diz: Ih, ele tá me reconhecendo...tá chorando de medo.

Sassá lê de tudo e no original. E bota tudo nisso. Ele vai desde cópias confiscadas de Ulisses do James Joyce, nos Estados Unidos, passa por Nietzsche, destrincha Machado, sabe quase tudo de Shakespeare de cor e por aí vai. Nem bula de remédio escapa. Se alguém fala que tá borrifando Cepacaina na garganta, ele ataca: Presta atenção, não come esse ovo colorido aí do bar porque as gorduras presentes no leite e nos ovos cortam o efeito do remédio. Se o Sassá falou pode ter certeza que isso tava lá na bula.

Mas então, ele pegou no meu ombro daquele jeito dele e disse: Já li. Eu fui logo falando: Não me conta nada. E ele: Pode ficar tranquilo que o mocinho não morre no final...Não pude evitar um sorriso e uma curiosidade. E perguntei o que ele achou. Ele, com aquela ironia fina de agulha de acupuntura, falou, depois de tomar um gole da minha cachaça: Olha, parece agradecimento público de baiano. Fala de todo mundo com nome e sobrenome, senão não vai comer caruru no ano que vem... Aí eu evoluí de um sorriso pra gargalhada.

Conheci pessoalmente o Boni em 1980. Eu morava em Nova Iorque e recebi um convite para a cerimônia de entrega do Prêmio Salute, concedido à Rede Globo pela "International Council of the National Academy of Television, Arts and Sciences”, dos Estados Unidos, devido à qualidade dos programas por ela produzidos. Era um jantar de gala e, por coincidência ou sei lá porque, minha mesa ficava próxima a dele. Nos cumprimentamos e só. Duvido que ele tivesse me reconhecido, mesmo eu tendo participado de um programa da TV Globo que na época era de uma audiência absurda, a ponto de bater novelas e Jornal Nacional. Era um programa de humor, chamado o Planeta dos Homens. Ou mesmo que ele tivesse um lapso de lembrança da minha participação na novela Água Viva, como namorado da Estela, personagem interpretada pela Tonia Carrero. Não importa.
Mas o que mais estranhei nesse evento em NY foi o discurso do Roberto Marinho ser em português. Eu pensei: Caramba, o dono de uma rede gigantesca de TV não sabe falar inglês?

Voltando ao bar. À nossa mesa, chegou bem de mansinho a Mariana. Mariana Só Bebe Chope. Esse é o apelido dela nas internas. Ela é toda conectada, sempre atualizando suas mensagens de e-mail no celular.
E Mariana, jovem e perspicaz, pediu um chope, entrou na conversa e no segundo gole, segurando o livro, perguntou: Quem é esse cara com dentinhos de milho? Explicamos e ela sentenciou: Televisão já era! Eu e Sassá nos entreolhamos. Ela, num muchocho, continuou: Ainda bem que esse cara saiu fora antes de ouvir o estrondo final...Televisão é pura bobagem. Só assistem os viciados. É um veículo ultrapassado. Hoje a comunicação é outra, entende? A televisão vai de braço dado com o cinema pro calvário. Após esse vaticínio, levantou-se e foi trocar idéias com Mirtinha, que tinha acabado de chegar e sentado no balcão. Um dia eu falo da Mirtinha pra vocês.

Será? Será que Mariana tá com a razão? Sassá citou Marshall McLuhan, que foi um dos precursores na discussão da mídia, com seu famoso livro “O Meio é a Mensagem”, nos anos 60. Ele foi também um dos responsáveis do conceito de Aldeia Global, que simplificando, dizia que progresso tecnológico reduziu todo o planeta à mesma situação que ocorre em uma aldeia, e que a comunicação seria na verdade uma intercomunicação diretamente com qualquer pessoa. Ele ainda cravou a televisão como o meio de estabelecer essa comunicação em nível mundial.

Mariana, que tinha voltado pra buscar seu chope esquecido na nossa mesa e pegou o rabicho da conversa, falou: Tá vendo? Foi o que eu disse. Só que hoje a comunicação é de pessoa pra pessoa.
As pessoas podem criar seus próprios conteúdos. Não precisamos da televisão pra criar isso. Deu uma piscadela para mim, levantou o boné do Sassá, deu uma beijoca na sua careca e voltou para o papo com a Mirtinha.

Eu, que tinha avançado na biografia até a página 60, onde ele diz: “em meados dos anos de 1960 o Scatena me perguntou...” olhei para o livro do Boni, como se estivesse vendo os Manuscritos do Mar Morto. Sassá, percebendo minha decepção, lascou: Não liga, não! Imagine-se sentado num café Pigalle di Torvo em Roma, lendo as aventuras de César na época do Império Romano. Não consola, eu sei, mas tem seu charme.