O
LIVRO DO BONI
Fazia
a faxina anual na minha estante quando,
de repente, caiu
um livro bem no dedão do meu pé direito. O livro era grosso. Era o
Livro do Boni. Até chequei a capa duas vezes pra ver se não tinha
quebrado nenhum dos dentes do Boni,
tamanha foi
a queda...O meu dedão inchado, tudo bem, mas restaurar
um daqueles dentes tão perfeitos da
capa do livro,
eu teria que empenhar minhas três
fazendas e ainda teria que vender meu Lamborghini
para o fotógrafo Antonio Guerreiro refazer a foto.
No
Natal é a única época
do ano em que o Bar do Manéu
fica meio às moscas. Aliás, até elas ficam meio tristes por falta
de clientes pra provocar e levar de volta alguns tabefes.
Uns
clientes ficam em casa,
fingindo que têm família pra comemorar o nascimento de “Nosso
Senhor Jesus Cristo que morreu na cruz para nos salvar...”,
como diz um pedacinho do Dia da
Criação do maior poeta/pinguço do
Brasil, Vinícius de Morais. Outros,
realmente,
vão comer castanhas com filhos e agregados. E têm aqueles que
viajam pra Ribeirão Preto, como foi o meu caso. Trouxe de lá,
misturado ainda na saliva,
o gosto de quitutes maravilhosos de uma ceia feita
no capricho pela dona Inês e, debaixo
do braço, de presente, bem colado ao sovaco, O
Livro do Boni. Aquele lá de cima
que caiu no meu dedão.
Aproveitei
que nessas semanas de entressafra o Bar do Manéu
estava
meio vazio, escolhi uma mesa no cantinho, pedi uma cachacinha
mineira, torresminho e parti pra dentro do livro.
Quando
ainda estava na parte “... e aí eu
corria entre os laranjais da fazenda do meu avô...” -
toda biografia começa assim- sentou-se ao meu lado,
Sassá, o homem mais feio do Velho
Oeste, e com um humor ferino e
certeiro. Ele mesmo se auto-sacaneia. Quando algum bebê de colo
chora ao seu lado,
ele diz: Ih, ele tá me reconhecendo...tá chorando de medo.
Sassá
lê de tudo e no original. E bota tudo nisso. Ele vai desde cópias
confiscadas de Ulisses do James Joyce,
nos Estados Unidos, passa por Nietzsche, destrincha Machado, sabe
quase tudo de Shakespeare de cor e por aí vai. Nem bula de remédio
escapa. Se alguém fala que tá borrifando Cepacaina na garganta, ele
ataca: Presta
atenção, não come esse ovo colorido aí do bar porque as
gorduras presentes no leite e nos ovos cortam o efeito do remédio.
Se o Sassá falou pode ter certeza que isso tava lá na bula.
Mas
então, ele pegou no meu ombro daquele jeito dele e disse: Já li.
Eu fui logo falando: Não me conta nada. E ele: Pode ficar tranquilo
que o mocinho não morre no final...Não pude evitar um sorriso e uma
curiosidade. E perguntei o que ele achou. Ele,
com aquela ironia fina de agulha de acupuntura,
falou, depois de tomar um gole da minha cachaça: Olha,
parece agradecimento público de baiano. Fala de todo mundo com nome
e sobrenome, senão não vai comer caruru no ano que vem... Aí
eu evoluí
de um sorriso pra gargalhada.
Conheci
pessoalmente o Boni em 1980. Eu morava em Nova Iorque e recebi um
convite para a cerimônia de entrega do
Prêmio Salute,
concedido à Rede Globo pela "International
Council of the National Academy of Television, Arts and Sciences”,
dos Estados Unidos, devido à qualidade dos programas por ela
produzidos. Era um jantar de gala e,
por coincidência ou sei lá porque, minha mesa ficava próxima a
dele. Nos cumprimentamos e só. Duvido que ele tivesse me
reconhecido, mesmo eu tendo participado de um programa da TV Globo
que na época era de uma audiência absurda, a ponto de bater novelas
e Jornal Nacional. Era um programa de humor,
chamado o Planeta dos Homens.
Ou mesmo que ele tivesse um lapso de lembrança da minha participação
na novela Água Viva,
como namorado da Estela, personagem interpretada pela Tonia Carrero.
Não importa.
Mas
o que mais estranhei nesse evento em NY foi o discurso do Roberto
Marinho ser em português. Eu pensei:
Caramba, o dono de uma rede gigantesca
de TV não sabe falar inglês?
Voltando
ao bar. À nossa mesa,
chegou bem de mansinho a Mariana. Mariana Só Bebe Chope. Esse é o
apelido dela nas internas. Ela é toda conectada, sempre atualizando
suas mensagens de e-mail no celular.
E Mariana, jovem e perspicaz, pediu um chope, entrou na conversa e no
segundo gole, segurando o livro,
perguntou: Quem
é esse cara com dentinhos de milho? Explicamos e ela sentenciou:
Televisão
já era! Eu e Sassá nos entreolhamos. Ela, num muchocho, continuou:
Ainda bem
que esse cara saiu fora antes de ouvir o estrondo final...Televisão
é pura bobagem. Só assistem
os viciados. É um veículo ultrapassado. Hoje a comunicação é
outra, entende? A televisão vai de braço dado
com o cinema pro calvário. Após esse vaticínio, levantou-se e foi
trocar idéias com Mirtinha, que tinha acabado de chegar e sentado no
balcão. Um dia eu falo da Mirtinha pra vocês.
Será?
Será que Mariana tá com a razão? Sassá citou Marshall McLuhan,
que foi um dos precursores na discussão da mídia, com seu famoso
livro “O Meio é a Mensagem”,
nos anos 60. Ele foi também um dos responsáveis do conceito de
Aldeia Global, que simplificando, dizia
que progresso tecnológico reduziu todo o planeta à mesma situação
que ocorre em uma aldeia, e que a comunicação seria na verdade uma
intercomunicação diretamente com qualquer pessoa. Ele ainda cravou
a televisão como o meio de estabelecer essa comunicação em nível
mundial.
Mariana,
que tinha voltado pra buscar seu chope esquecido na nossa mesa e
pegou o rabicho da conversa, falou: Tá vendo? Foi o que eu disse. Só
que hoje a comunicação é de pessoa pra pessoa.
As
pessoas podem criar seus próprios conteúdos. Não precisamos da
televisão pra criar isso. Deu uma piscadela para mim, levantou o
boné do Sassá, deu uma beijoca na sua careca e voltou para o papo
com a Mirtinha.
Eu,
que tinha avançado na biografia até a página 60, onde ele diz: “em
meados dos anos de 1960 o Scatena me perguntou...” olhei
para o livro do Boni, como se estivesse vendo os Manuscritos
do Mar Morto. Sassá,
percebendo minha decepção,
lascou: Não liga,
não! Imagine-se
sentado num café Pigalle di Torvo em Roma, lendo as aventuras de
César na época do Império Romano. Não consola, eu sei, mas tem
seu charme.