segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


O LIVRO DO BONI


Fazia a faxina anual na minha estante quando, de repente, caiu um livro bem no dedão do meu pé direito. O livro era grosso. Era o Livro do Boni. Até chequei a capa duas vezes pra ver se não tinha quebrado nenhum dos dentes do Boni, tamanha foi a queda...O meu dedão inchado, tudo bem, mas restaurar um daqueles dentes tão perfeitos da capa do livro, eu teria que empenhar minhas três fazendas e ainda teria que vender meu Lamborghini para o fotógrafo Antonio Guerreiro refazer a foto.

No Natal é a única época do ano em que o Bar do Manéu fica meio às moscas. Aliás, até elas ficam meio tristes por falta de clientes pra provocar e levar de volta alguns tabefes.
Uns clientes ficam em casa, fingindo que têm família pra comemorar o nascimento de “Nosso Senhor Jesus Cristo que morreu na cruz para nos salvar...”, como diz um pedacinho do Dia da Criação do maior poeta/pinguço do Brasil, Vinícius de Morais. Outros, realmente, vão comer castanhas com filhos e agregados. E têm aqueles que viajam pra Ribeirão Preto, como foi o meu caso. Trouxe de lá, misturado ainda na saliva, o gosto de quitutes maravilhosos de uma ceia feita no capricho pela dona Inês e, debaixo do braço, de presente, bem colado ao sovaco, O Livro do Boni. Aquele lá de cima que caiu no meu dedão.

Aproveitei que nessas semanas de entressafra o Bar do Manéu estava meio vazio, escolhi uma mesa no cantinho, pedi uma cachacinha mineira, torresminho e parti pra dentro do livro.
Quando ainda estava na parte “... e aí eu corria entre os laranjais da fazenda do meu avô...” - toda biografia começa assim- sentou-se ao meu lado, Sassá, o homem mais feio do Velho Oeste, e com um humor ferino e certeiro. Ele mesmo se auto-sacaneia. Quando algum bebê de colo chora ao seu lado, ele diz: Ih, ele tá me reconhecendo...tá chorando de medo.

Sassá lê de tudo e no original. E bota tudo nisso. Ele vai desde cópias confiscadas de Ulisses do James Joyce, nos Estados Unidos, passa por Nietzsche, destrincha Machado, sabe quase tudo de Shakespeare de cor e por aí vai. Nem bula de remédio escapa. Se alguém fala que tá borrifando Cepacaina na garganta, ele ataca: Presta atenção, não come esse ovo colorido aí do bar porque as gorduras presentes no leite e nos ovos cortam o efeito do remédio. Se o Sassá falou pode ter certeza que isso tava lá na bula.

Mas então, ele pegou no meu ombro daquele jeito dele e disse: Já li. Eu fui logo falando: Não me conta nada. E ele: Pode ficar tranquilo que o mocinho não morre no final...Não pude evitar um sorriso e uma curiosidade. E perguntei o que ele achou. Ele, com aquela ironia fina de agulha de acupuntura, falou, depois de tomar um gole da minha cachaça: Olha, parece agradecimento público de baiano. Fala de todo mundo com nome e sobrenome, senão não vai comer caruru no ano que vem... Aí eu evoluí de um sorriso pra gargalhada.

Conheci pessoalmente o Boni em 1980. Eu morava em Nova Iorque e recebi um convite para a cerimônia de entrega do Prêmio Salute, concedido à Rede Globo pela "International Council of the National Academy of Television, Arts and Sciences”, dos Estados Unidos, devido à qualidade dos programas por ela produzidos. Era um jantar de gala e, por coincidência ou sei lá porque, minha mesa ficava próxima a dele. Nos cumprimentamos e só. Duvido que ele tivesse me reconhecido, mesmo eu tendo participado de um programa da TV Globo que na época era de uma audiência absurda, a ponto de bater novelas e Jornal Nacional. Era um programa de humor, chamado o Planeta dos Homens. Ou mesmo que ele tivesse um lapso de lembrança da minha participação na novela Água Viva, como namorado da Estela, personagem interpretada pela Tonia Carrero. Não importa.
Mas o que mais estranhei nesse evento em NY foi o discurso do Roberto Marinho ser em português. Eu pensei: Caramba, o dono de uma rede gigantesca de TV não sabe falar inglês?

Voltando ao bar. À nossa mesa, chegou bem de mansinho a Mariana. Mariana Só Bebe Chope. Esse é o apelido dela nas internas. Ela é toda conectada, sempre atualizando suas mensagens de e-mail no celular.
E Mariana, jovem e perspicaz, pediu um chope, entrou na conversa e no segundo gole, segurando o livro, perguntou: Quem é esse cara com dentinhos de milho? Explicamos e ela sentenciou: Televisão já era! Eu e Sassá nos entreolhamos. Ela, num muchocho, continuou: Ainda bem que esse cara saiu fora antes de ouvir o estrondo final...Televisão é pura bobagem. Só assistem os viciados. É um veículo ultrapassado. Hoje a comunicação é outra, entende? A televisão vai de braço dado com o cinema pro calvário. Após esse vaticínio, levantou-se e foi trocar idéias com Mirtinha, que tinha acabado de chegar e sentado no balcão. Um dia eu falo da Mirtinha pra vocês.

Será? Será que Mariana tá com a razão? Sassá citou Marshall McLuhan, que foi um dos precursores na discussão da mídia, com seu famoso livro “O Meio é a Mensagem”, nos anos 60. Ele foi também um dos responsáveis do conceito de Aldeia Global, que simplificando, dizia que progresso tecnológico reduziu todo o planeta à mesma situação que ocorre em uma aldeia, e que a comunicação seria na verdade uma intercomunicação diretamente com qualquer pessoa. Ele ainda cravou a televisão como o meio de estabelecer essa comunicação em nível mundial.

Mariana, que tinha voltado pra buscar seu chope esquecido na nossa mesa e pegou o rabicho da conversa, falou: Tá vendo? Foi o que eu disse. Só que hoje a comunicação é de pessoa pra pessoa.
As pessoas podem criar seus próprios conteúdos. Não precisamos da televisão pra criar isso. Deu uma piscadela para mim, levantou o boné do Sassá, deu uma beijoca na sua careca e voltou para o papo com a Mirtinha.

Eu, que tinha avançado na biografia até a página 60, onde ele diz: “em meados dos anos de 1960 o Scatena me perguntou...” olhei para o livro do Boni, como se estivesse vendo os Manuscritos do Mar Morto. Sassá, percebendo minha decepção, lascou: Não liga, não! Imagine-se sentado num café Pigalle di Torvo em Roma, lendo as aventuras de César na época do Império Romano. Não consola, eu sei, mas tem seu charme.

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