sábado, 14 de abril de 2012



BAR DO MANÉU
histórias que nunca se viu

O BAR DO MANÉU é o recanto mais simpático do Rio. Pra poucos. Fica encravado ali nas redondezas da Praça Mauá, cujo endereço não revelo nem sob tortura ou polpuda propina, pois o seu dono, Manéu dos Tremoços, sempre diz: “Não me tragam mais ninguém! Não me tragam mais ninguém! E eu não tô aqui pra perder o choro generoso que ele sempre coloca no meu copinho de cachaça.

Manuel Serafim de Oliveira, seu nome de batismo. Nascido em Trás dos Montes, Portugal, veio pro Brasil ainda novinho, numa segunda-feira gorda de Carnaval. Por que todo gringo que se preza e resolve ficar no Brasil, sempre chega numa “segunda-feira gorda de Carnaval?”

Manuel de Oliveira, que virou Manéu, trabalhou num secos e molhados na Rua do Riachuelo e, mais tarde, resolveu importar tremoços da santa terrinha. O negócio ia muito bem, mas a concorrência dos outros patrícios foi feroz e ele resolveu comprar um bar na rua...Ih, quase que eu entrego...e assim nos brinda com seus petiscos e aperitivos há mais de 50 anos. Embora seu negócio seja outro, continua sendo pra todo mundo o Manéu dos Tremoços.

Quando ele diz: “Não me tragam mais ninguém!”, na verdade não é uma imposição autoritária ou falta de tino pros negócios. É que o Bar do Manéu é a sua família e ele sempre fala que não quer “agregados” e que quando todo mundo morrer ele fecha o bar. Como se ele fosse ficar pra semente, ou melhor, pros tremoços...

Lá pinta de tudo. Do próspero empresário do ramo da siderurgia, Dorval de Alcântara Figueiras, ao Zé Mão no Chão, faxineiro aposentado do Edifício Serrador, ali na Cinelândia. Todos tratados por Manéu e seus garçons da maneira mais cordial e descontraída possível. Sem privilégios.

O que vamos revelar nesse pedaço da Internet são suas histórias. Umas hilárias, outras um pouco tristes, mas todas regadas a humor e um bom azeite português, pra descer mais fácil...


PAULO MORRÃO


O Paulão Morrão, na sexta-feira passada, começou a gritar a plenos pulmões no bar do Manéu: “O tesão não é estético!!!”.
Deixe eu explicar, primeiro, quem é o Paulão. Ele é um autêntico “barba e bolsa”. Manja o tipo? Meio, assim, um hippie que não deu certo e hoje faz colarzinho na Avenida Atlântica, sabecomé?

O Paulão, na década de 70, até que fez uma graninha com uma pousada em Arembepe, lá na Bahia, mas queimou tudo em “cigarros fortes”...

Ele vive sempre doidão. Parece até que ele pinga groselha nos olhos. Nessas horas de loucura, se alguém perguntar o nome dele, responde numa voz pastosa: “Escuta aqui...ó... dá pra fazer...uma pergunta mais fácil?...”.

Nós temos um amigo, o Sala, um judeu que freqüenta cartomante e candomblé e que, num daqueles feriados judaicos, que exigia jejum, comia com muita culpa um belíssimo filezão no Bar do Manéu.
O Paulão Morrão não conversou e mandou na lata: “Não se preocupa não, ô Sala, Deus tá muito ocupado. Ele tá almoçando um churrasco...”.
Depois dessa observação, o Sala, já mais descontraído, além da polenta frita, pediu mais linguicinha e chope gelado. Assim é o Paulão.

Mas, nessa sexta-feira aqui no Bar do Manéu, a que eu estava me referindo lá no início e que você agora não lembra porque não prestou atenção, ele falava de Bertioga.
A sua nova namoradinha, que ela chamava de “meu petisquinho”

Todo mundo no boteco sabia que ele nunca teve bom gosto nas companhias femininas, mas dessa vez ele tinha abusado. Eta mulher feia da peste! O cabelo da tal Bertioga era todo desgrenhado, caindo por cima dos olhos, parecia que tinha passado um furacão por ali. Os olhos vesgos e esbugalhados, um toco de cigarro apagado no canto da boca, boca essa que pertencia a uma cara que mais parecia uma cuíca. Para completar o quadro, sem bunda, mais magra que filé de borboleta e com um queixo que mais parecia uma castanha de caju.

Mas, como diz o Paulão, o tesão não é estético...

TEM GOSTO PRA TUDO

Estava lendo um dia desses sobre o tal Almir Klink, aquele navegador que adora dar a volta ao mundo sozinho num barquinho.
Tu já pensou, Juvenal? Pra não dizer que ele está absolutamente sozinho, parece que leva, nas viagens, um pacotinho de jujubas, 3 saquinhos plásticos para ele vomitar com as ondas gigantescas em alto-mar e uma fotografia do cãozinho de estimação...Mulher que é bom, nada.
Pô, Juvenal, quando esse cara volta, depois de seis meses, deve apresentar a mão direita tipo: “Essa aqui é a minha senhora...”.

Parece que o cara gosta mais de mar do que os próprios peixes, que adoram uma panela quente cheia de óleo, na cozinha lá de casa. Humm...com batatas cozidas, então, que delícia.

Mas, como diz o Toleta, um pernambucano muito invocado aqui do Bar do Manéu: “Tem gosto pra tudo”. Só que ele fala isso ingerindo carne seca no “óleo e óleo” em jejum.
Tá vendo só? Tem gosto pra tudo.

Existe gente que elege político corrupto. E o político “elege” a própria família para cargos bem remunerados. Tem gosto pra tudo.

O Julinho Sobradão pula invocado aqui do meu lado: “Não vai falar mal das bichas, hein, bofe?”. Meu amado leitor, deixa-me explicar: o meu amigo Julinho tá reclamando antecipado porque ele tem o apelido de Sobradão.
Explico melhor: é que ele não é muito alto, tá meio caído e “atende pela porta dos fundos”, você entendeu, né?
Tem gosto pra tudo...

Não tem aquele povo que no Carnaval se manda prum convento e fica rezando, enquanto outro passa, na mesma época, o dia inteiro pecando deliciosamente na gandaia? Então, tem gosto pra tudo.

Existe gente que gosta de jiló, quiabo, bife malpassado, café requentado, refrigerante diet, mulher magra, fumar até morrer, comida a quilo, calça apertada, reclamar da vida, bater em criança, apanhar da mulher, escrever “boa noite, vou dormir” no facebook.
Tem gente que adora fila, comer meleca escondido, avançar sinal de trânsito, brigar em supermercado, se fazer de trouxa, pensar que é esperto.

Tem gosto pra tudo. Tem gosto pra tudo...

quarta-feira, 11 de abril de 2012


MERGULHO NO CORPO HUMANO



Fonseca nunca deveria ter ido àquele boteco, em frente ao Bar do Manéu, e comer aquela maldita coxinha. Coitado, também não poderia adivinhar o que lhe aconteceria com aquele ato impensado. A revolução que causaria naquele corpo humano. Fatos que marcariam sua vida para sempre.
Não tinha nenhum cartaz convidando o cliente para visitar a cozinha daquele botequim. Mas mesmo assim Fonseca teve a impressão de que era tudo muito limpinho. Parecia até que o bolinho de bacalhau tinha feito a barba de manhã...
Ele colocou no balcão a pasta monstruosamente pesada, carregada de amostras grátis, folhetos e o escambau. Ele era representante de laboratório farmacêutico.

Já naquele fim de dia o estômago do Fonseca roncava mais que avó com desvio de septo, dormindo de barriga pra cima...
Ele tinha que comer alguma coisa com urgência. Mas estava duro, só lhe restavam uns trocados no bolso. Aliás a situação tava tão braba que já tinha vendedor de biscoito comendo o mostruário...
Muito bem. Fonseca parou no boteco e, cheio de fome, pediu uma coxinha de galinha. Uma singela coxinha de galinha.

Foi aí que tudo começou. As cortinas se abriram e começou o grande show!
As glândulas do Fonseca começaram a entrar em erupção só de imaginar que iriam trabalhar em algum alimento consistente naquele dia.
A coxinha estava feliz. Ninguém queria nada com ela fazia semanas. Nem mesmo tinha recebido uma lambidinha do garçom. Ela chegou a sorrir, lânguida e dengosa, quando Fonseca a acomodou no guardanapo.
As enzimas aplaudiam antecipadamente a visita da coxinha no estômago. Estavam no maior frenesi!
O suco gástrico estava até com dor no pescoço, de tanto olhar para cima em direção à goela do Fonseca. Não aguentava mais de tanta espera.
E como sempre, os irmãos colesterol viviam às turras. Como Caim e Abel, tinha o mau e o bom.... O mau esfregava as mãos de prazer, vendo possibilidades naquela coxinha, sob olhares de reprovação do seu irmão bonzinho.

Mas nem tudo era festa.
O sensível fígado, como sempre, ficava emburrado nessas situações. Com seus fartos bigodes, ar sombrio e espírito conservador, não gostava nada do trabalho que teria pela frente. Para quem não bebe, não fuma, não toma drogas, aquela coxinha seria um desacerto naquele dia.

Mas não dava mais para segurar! Foi dada a partida!
Tudo começou com a saliva que, com ciúme e sem nenhum envolvimento, despachou a coxinha pela boca, sem mais nem menos.
O porteiro esôfago, todo engalanado, a deixava passar sem pedir ao menos os documentos. “Deveriam ter mais cuidado com a fiscalização”, pensava a úlcera. Afinal, ela podia ser “de menor”.

Sem dar bola pro azar, lá vinha a coxinha, toda sexy, descendo e roçando nos músculos estriados, que tinham acabado de fazer uma aula de aeróbica com o pulmão...
Tudo era festa naquele corpo cavernoso!
Era um espetáculo magnífico! Dava gosto de ver.

As enzimas pepsinas, inimigas e concorrentes das enzimas “cocalinas”, viviam disputando espaço naquele evento digestivo.

Madame digestão, com sua maquiagem carregada e seu vestido florido, colocava um batalhão de bactérias sedutoras para ajudá-la na recepção da recém-chegada coxinha. Mas, perigosamente, as bactérias do cabaré, enquanto despiam a coxinha, também criavam gazes que se acumulavam perigosamente no corpo de Fonseca.

O duodeno, velho e experiente galã de filmes mexicanos, não estava gostando nada disso...
Tava na cara que aquilo não ia terminar bem.
Bem que os intestinos avisaram...
Numa contração involuntária, o ânus se abriu e falou tudo para o esfíncter pilórico, seu psicanalista. Deixou jorrar para o exterior todas as suas mazelas psicofísicas e, junto a isso, uma fortíssima corrente exalante à base de enxofre, infectando o ambiente.
E num flatos final, terminava ali aquela magnífica orgia digestiva!

Ao Fonseca, coitado, depois de tudo isso, restou a companhia da azia, uma menina bonitinha, mas muito enjoada...









MACHO, MUITO MACHO!


No Bar do Manéu, essa história é sempre lembrada quando algum valentão quer se alterar e partir pros conformes. “Não vem não, Mangabeira”, alguém nessas ocasiões sempre grita lá fundo do bar. E a gargalhada é geral.

Mangabeira era um sujeito atarracado e aparentando menos que os seus 62 anos, apesar das rugas que deixavam seu rosto parecendo um mapa fluvial...
Era forte como um touro. Queixo quadrado, pescoço curto, usava há anos uma peruca muito mal-ajambrada, para esconder uma calvície avançada.

Era do tipo que falava muito alto. E sempre contando vantagem. Com seu rosto avermelhado, proclamava em alto e bom som: “Eu sou é macho, muito macho!”.
A turma tinha que ficar horas ouvindo, incrédula, suas incríveis estórias de “coragem e heroísmo”.
Batendo na mesa e no peito, vociferava: “Eu sou um cabra muito macho! Eu já dei um tapa na cara do Gadafi!”. Moreira, um gozador de primeira, cochichava para quem estivesse ao seu lado: “Daqui a pouco ele vai dizer que comeu o cu do Lampião...”.

Um dia, chegou no bar exibindo um charuto cubano no canto da boca e relatou, em pormenores, como demoliu todo o exército de Batista, ajudando, assim, Fidel Castro tomar o controle da ilha.

Mangabeira não tinha limites.
Já tinha corrido em zigue-zague em campos minados de bombas em Angola, andado descalço em brasas vivas, passado a mão na bunda de Churchill.
A melhor delas era como tinha tirado com um tapa o binóculo do Hummel, a raposa do deserto, durante a segunda guerra mundial. Essa era demais! A turma não aguentava e sempre pedia detalhes, para aumentar o delírio do Manga. Ele chegava a se levantar e reproduzir a façanha em detalhes.

Outra muito boa era a da figuração que, segundo ele, tinha feito no filme Spartacus. “Aí, eu virei pro Kirk Douglas e falei: O papel era pra mim, mas vou te dar uma chance”.
Mas a verdade é que todo mundo no Bar do Manéu já estava acostumado com aquela presepada.
Se tivesse vivido em outra época, provavelmente teria afirmado que foi ele que tocou fogo em Roma...

Mas naquele dia de finados, a marra do Mangabeira ficou totalmente sob suspeita.
Clodovino chegou esbaforido e falou pro pessoal que o Manga estava em apuros. A moçada foi correndo pro prédio dele, pensando no pior. As versões eram várias. Como, em se tratando de Mangabeira ninguém botava fé em nenhuma delas, foi todo mundo lá conferir.
Bombeiros, ambulância, um monte de gente nas sacadas nos prédios vizinhos.

A gente ali, sem poder acreditar no que estava vendo.
Mangabeira, o machão, com uma garrafa de champanhe entalada no rabo!
Não podia ser verdade! A turma toda do Bar do Manéu assistindo incrédula aos seis bombeiros levando o Manga, o nosso macho Manga, com uma garrafa totalmente atochada no furico.
Na porta do prédio dele, uma bicha descabelada e totalmente desconsolada tentava, no meio da multidão, se explicar para a polícia: “Seu PM, a gente já tem um caso secreto há dez anos. Mas essa foi a primeira vez que ele pediu essa extravagância. Eu não pude fazer nada. Foi ele que insistiu. Eu juro...”.

A gente ficou embasbacado, com o queixo caído, olhando um para cara do outro, quando o Moreira salvou a noite dizendo: “Pessoal, é o seguinte, eu sempre desconfiei do Mangabeira, mas alguém pode me explicar por que todo travesti tem a voz do pato Donald...?”


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012


NAQUELA TARDE DE VERÃO EM IPANEMA

Às vezes fico tomando uma cachacinha no Bar do Manéu e deixo a mente vagar por aí. Dessa vez ela rumou para os anos 60.

Era uma tarde ensolarada no Rio de Janeiro. Soprava uma brisa que acariciava, um cheirinho delicioso de maresia. Devia estar fazendo uns 30º mas naquela época ainda tínhamos camada de ozônio, portanto, sem protetor solar. Nessa tarde as ondas estavam ótimas e peguei vários “jacarés”. Estamos em 1962. Ipanema.

Saí da praia e caminhei pela Rua Montenegro, chegando ao bar Veloso. Sentei numa mesa com uns amigos. Pedi uma cachaça envelhecida em jequitibá e uma água com gás. Meu amigo que sentava à minha esquerda e tomava uísque, disse: Aroldinho, você tá certo. A gente deve valorizar nossas coisinhas. O outro amigo à minha direita deu um sorriso. A menina sentada à minha frente fumava distraída e o garçom colocava mais uma pedrinha de gelinho no uisquinho do meu amiguinho.

Entra uma menina de maiô de duas peças. Não se esqueçam: estamos em 62.
Compra cigarros pra mãe dela isso soubemos depois - e vai embora sem olhar pros lados. Nem era tão bonita assim. Tá bom, bonitinha. Mas meu amigo do uísque acha todas as mulheres do mundo lindas, sempre pedindo perdão às feias... Ele dizia: Que coisinha mais lindinha...
O meu amigo da direita, embora estivesse ocupado com o cabelo que lhe caía nos olhos, teve tempo de acrescentar: Uma graça.

Ciumenta, a amiga que sentava à nossa frente fez uma cara feia e ameaçou ir embora. Eu, impedindo, segurei na sua mão e disse: Não liga não. Ela só vem por aqui e passa. Ou compra cigarros pra sua mãe ou vai na costureira.

A gente estava sentado perto do banheiro, numa mesinha discreta, com o caixa bem próximo.

De repente, volta a menina, aquela do maiô de duas peças e vai direto ao caixa. Tinha esquecido o troco: 5.000 cruzeiros.
Era uma nota ainda nova, pois tinha sido lançada em 1961 pela Casa da Moeda do Brasil. Era conhecida como a nota do índio por trazer estampado o rosto de um primeiro habitante de nossas terras. Só que com a inflação ela pulou de 5 para 5.000 cruzeiros.

Ela embolsou a grana e foi embora. Mas conseguiu chamar de novo nossa atenção.
Meu amigo da esquerda falou: Que coisa mais linda... O amigo da direita: Mais cheia de graça... E eu completei: É ela menina que vem e que passa...
Nesse momento, a menina que sentava à nossa frente apagou o cigarro, deu um gole no chope, tirou a bolsa do encosto da cadeira e falou: Ah, por que tudo é tão triste...?
Levantou-se e foi embora.

O resto? É história.

VAI TOMAR NA COZINHA


...Encha o vidro com alho branco descascado. Coloque duas colheres de sal e chacoalhe o vidro para o sal se espalhar. Deixe descansar por um dia para desidratar. O alho vai soltar um pouco de água. Jogue a água fora depois de 24 horas. Deixe o alho descansar dentro do vidro por mais três dias sem mexer....Depois...”

Eu anotava rapidamente a receita de alho curtido que Morais, o chef de cuisine do Bar do Manéu, me passava. Tinha pressa. Precisava preparar essa iguaria até a semana seguinte e o processo todo leva doze dias. Bota sal, tira, coloca vinagre, lava, repousa no azeite e por aí vai. É meticuloso. Exige paciência.
Esse alho curtido é pra ser comido como petisco e acompanhado de uma cachaça ou uma cerveja boçalmente gelada, é pra ser apreciado de joelhos e mãos postas. Já sei, você tá pensando que fica aquele gosto forte de alho, né? Que nada... O processo que o Morais me ensinou tira todo o ardor do alho, fica só a essência celestial...Se você quiser a receita toda, me passa um e-mail que eu te digo.

Gosto de batucar umas panelas com colher de pau. Vou da feijoada à indiana, passando pelo bobó de camarão e rabada, fazendo um pit stop no cozido e no robalo recheado com mariscos, dando uns petelecos nas pastas árabes e por aí vai minha estrada gastronômica. Abomino miojo e detesto “mixidinho”, comida de preguiçoso.

Muito se fala: cozinhar é uma arte. Concordo. A arte da sutileza dos temperos. A arte das misturas inusitadas. A arte da comida colorida nos tons e sabores certos.

Conheço algumas pessoas que são mestres-cucas na verdadeira acepção da palavra e eu nunca perco uma chance de aprender um prato novo.
Quando morei em Salvador, queria aprender a real muqueca de peixe na fonte, na partitura original. Não tive dúvida, colei numa amiga que é uma pedrada na cozinha. Ela faz de tudo, bem e gostoso.

Papel e caneta, lá fui eu: cebola, tomate, coentro à vontade. Anotava tudo rapidamente e com a letra descabelada. O segredo era o coentro que eu botava com uma modéstia de um padre franciscano e, na verdade, tem que ser com a generosidade que o Malaquias, o melhor garçom do Rio, serve as minhas doses de cachaça. Bastantão.

Nessa mesma parada soteropolitana, entre outras iguarias, aprendi a fazer manteiga de linhaça. Deixa de molho de um dia pro outro, coloca cebola, um dentinho de alho que não tenha cárie e uma pitada Chanel nº5 de sal. Bate tudo no liquidificador, coloca num vidro, sela com azeite, guarda na geladeira. Depois é só passar no pão ou colocar na salada.
Hummm...que delícia, Sil Psi.
Essa manteiga é muito boa para manter as veiotas em dia. Eu disse veiotas, relativo a veias e não velhotas, relativo a “véias”...

Sil Psi é uma amiga mineiríssima que na cozinha só sabe fazer pescado. Mineira cozinhando frutos do mar? Seria o mesmo que gaúcho fazendo uma buchada de bode. Mas é como eu digo: A cozinha é democrática! Nas suas quatro paredes vale tudo! Só não pode pegar e provar a carne da feijoada com a mão porque azeda...

Quem às vezes perde a paciência é o Manéu, dono do bar que leva o seu nome.

Um dia desses, Romerinho, um bebum que de tempos em tempos aparece por lá, tava mais torto que anzol e ficou enchendo o saco do Manéu: Ô, portuga! Ô, portuga! Me fala aí: É verdade que um maratonista português perdeu uma corrida porque parava no sinal vermelho?
Manéu, fingindo que não ouvia, só balançava a cabeça.

E Romerinho insistia: Ô, portuga! Ô, portuga! Me fala aí: É verdade que um português de Coimbra pediu pro patrício aqui do Brasil um papagaio e o daqui mandou uma coruja, e depois de três meses o patrício daqui perguntou: E aí? O papagaio está a falare? E o patrício de lá falou: Falare ainda não está a falare não, mas presta uma atenção...

Romerinho emendou com uma gargalhada, pedindo na sequência ao Manéu: Escuta, portuga, me vê uma garrafinha d´água. Já tô bom de cerveja por hoje.

Eu pensei logo: Ih, vem chumbo grosso aí...
Não deu outra. Romerinho levantou na rede pro Manéu cortar.

O português olhou bem na cara do manguaça e lascou: Ô, gajo, vai tomar na cozinha!

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012


É CARNAVAL!


Hoje, quinta-feira, começa oficialmente o Carnaval no Bar do Manéu. Baile à fantasia que antecede o desfile pelo centro da cidade, como rege o regulamento do bloco Corno Sois Tu, que sai do bar pontualmente a qualquer hora...

A banda aos poucos vai se acomodando e Firmino, o maestro, já enxugou cinco cervas e perdeu a baqueta. Mas pra alívio de todos os músicos, ela, a baqueta, tinha rolado e estacionado bem no pé direito de Paulo Ventura, antigo zagueiro do Bangu que encurtou uma promissora carreira por conta de um menisco safado. Mas a baqueta parou na perna boa e o ex-craque teve tempo de mostrar a sua classe. Pisou numa das extremidades da bichinha, levantou com a parte externa do calcanhar e, num salamaleque, entregou de volta a Firmino seu instrumento de trabalho.
Recebeu de volta um beijo de Mirtinha.

Mirtinha, idade ignorada, lembra um samba canção de Nei Lopes que tem um pedacinho que diz: “Era um vulcão, um pedação de mau caminho, tudo isso embrulhadinho num rostinho angelical...” Narizinho arrebitado, sardas no rosto e no corpinho mignon que Moreira, o gozador, sempre lembra e comenta: Ô, Mirtinha, quando você era criança tomava sol de peneira?

Ela, de fantasia de cigana incorporada, lê o “futuro” de Robertinho num baralho enrugado, esquecido e encontrado no Bar do Manéu: Vejo uma reviravolta na sua vida...Você vai finalmente encontrar o amor da sua vida...Mirtinha esticou o “or” de amor até perder o fôlego. Robertinho, com olhar sacana, manda um beijinho de volta, juntando os lábios como o Patolino. Lembra do Patolino, amigo do Pernalonga? Pois é.

Eis que surge Napoleão, com toda a sua pompa, que sobe numa cadeira e anuncia:
“Eu fugi do exílio que me foi imposto na ilha de Elba, fugi dos navios ingleses com seus canhões apontados pro meu peito, com um exército mínimo marchei sobre Paris, nos 100 dias que se seguiram governei a França e agora desembarco na Praça Mauá para o júbilo de vocês!”
Gritos e assovios correm pelo bar e um coro afinado evoca: Viva Napoleão, o rei do sertão!
Napoleão é o Sassá, o erudito. Aquele que sabe tudo. Enverga um uniforme, meio desbotado é verdade, mas com altivez e galhardia, interpreta bem o general francês.

Manéu dos Tremoços, dono do bar e presidente emérito (ou seria honorário?) do bloco Corno Sois Tu, aprecia aquela fuzarca com seu tradicional pano de prato num dos ombros e lápis na outra orelha. Orelha esquerda de quem vem e direita de quem vai...

O pessoal, na maior euforia e excitação, chega com suas fantasias e se confraterniza da maneira mais improvável: Árabes com judeus. Piratas e colombinas. Políticos com polícia. Rubro-negros e vascaínos.

Moreirinha se fantasiou de povo com aquele tradicional nariz de palhaço. Juvenal está fantasiado de senador corrupto com dinheiro saindo de uma pasta 007 que ele carrega embaixo do braço. Os dois, abraçados, entoam sem parar como um mantra: O povo vencido, jamais será unido! O povo vencido, jamais será unido!

Malaquias, o melhor garçom do Rio de Janeiro, se desdobra com os outros gravatinhas-borboleta para atender a todos. Sai um virado! Um escondidinho pra mesa quatro! Quatro chopes preto pro balcão! Uma roupa-velha no capricho! Acelera, Morais!
Coitado...Morais, na cozinha, sua mais que tampa de marmita e se vira ao avesso pra dar conta do recado.

Horácio, aquele que sabe dar nó de gravata porque tem um namorado executivo, que veio fantasiado de Nureyev, com direito a sapatilha e tudo mais, dá piruetas e grand jeté pelo salão.

Mariana Só Toma Chope, travestida de Steve Jobs, confere e-mails no seu celular, enquanto...toma chope.

Zé Mão no Chão ensaia um bailado digno de um mestre-sala, jogando charme para Madame.
Madame...Ex-cafetina da antiga zona do meretrício da Presidente Vargas, na época das francesas e polacas, hoje beirando oitenta pra lá, franze o nariz fazendo charminho e dá um tapa nos beiços com um Drury´s dose dupla.

Com o Bar do Manéu lotadaço, a banda do Firmino afinadíssima na percussão e tinindo nos metais, ataca: “Esse ano não vai ser igual aquele que passou...”.

Magnólia, a manicure mais solicitada do Irajá, fantasiada de esperança e reforçando a mensagem, fala baixinho: Se Deus quiser...

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012


SALVADOR, SEGUNDO UMA NATIVA DE LÁ

Salvador sempre me causou um certo fascínio. A primeira vez que estive por lá nos anos 70, disse de mim para mim e para todo mundo ouvir: Quero morar aqui. Sei lá...o céu, a comida, o clima, a história da cidade... a magia.

Mas ao longo do tempo e da vida, comecei a ficar intrigado com a passividade baiana diante dos problemas. Parecia que era mais conveniente colocar os problemas embaixo do tapete. Bem escondido e longe do mar pra Iemanjá não ver...

Fascinado e intrigado, em 2010, lá fui morar por um ano inteiro. Essa experiência única eu deixo pra contar pra quem quiser curtir num outro momento porque agora eu estou ocupado em ouvir Fatiminha.

Enquanto eu degustava uma cachacinha especial envelhecida em umburana, chegando a essas ilações sobre Salvador, minha amiga Fatiminha fazia inalações por conta de uma renitente bronquite, aqui, você sabe onde? Vamos lá: um, dois, três! Todo mundo junto! Onde? Onde? Isso!!! No Bar do Manéu. Manéu dos Tremoços.
Quando Fatiminha borrifa com a bombinha seu nariz e começa a mexer nos cabelos, claro que uma coisa de cada vez, lá vem pronunciamento. E não deu outra.

Fatiminha é uma baiana que veio morar no Rio nos anos 80. De raiva, ela partiu de Salvador pra só voltar lá de vez em quando. Hoje mora em Santa Tereza e tem um atelier de pintura. Faz coisas lindas em acrílico. Pelas palavras dela você vai saber por que veio “de raiva”.

Quando ela levanta o tom de voz, todo mundo fica com as orelhas em pé. Antenor dedilhou umas notas como se fosse acompanhamento, mas recebeu um cutucão de Mirinha e uma advertência: Shiu!

(Para um melhor entendimento vou pontuar entre parêntesis, tá bom?)

“Olhe aqui, começou Fatiminha, é uma vergonha! Por isso que eu saí de lá de raiva. O baiano é um povo descarado! Veja! Eles não se desgrudam de ACM!
(Quando ouviu essa sigla, Moreirinha fez três vezes o sinal da cruz)

(Por quê? Todos do bar perguntaram)

“Por quê? Eu digo por quê. Bastou uma grevezinha da Polícia Militar pra esculhambar de vez Salvador. Homicídios, arrastões, saques, assaltos, tiros, pancadarias.”

(Moreirinha cochichou com Jaudério, o massagista: Disseram até que roubaram todos os acarajés do Rio Vermelho... Jaudério não se segurou e caiu na risada e falou: Assim não dá...assim não ...vocês querem me matar de tanto rir...)

Fatiminha continuou agora subindo o tom da voz, como se fosse uma candidata a deputada num palanque na Praça Castro Alves: “É uma putaria!”

( Antenor, ao ouvir a palavra mágica, não pode evitar um acorde sutil no violão e sussurrou para si mesmo: Salve!)

“E a Civil? Cadê a Civil pra garantir os cidadãos? (Continuou a baiana, agora em cima de uma cadeira). “E alguns devem estar falando: Com ACM isso não ia acontecer. Que merda é essa? A gente não precisa de painho nenhum! Precisa que o povo tome as rédeas. Que mostre a sua força. Não adianta mostrar energia só no Carnaval. O que mostra essa situação vergonhosa é que Salvador é uma cidade despreparada. Onde já se viu? Shows cancelados quando a cidade só ganha dinheiro nessa época do ano. Salvador tá mostrando que é um barril de pólvora pronta pra explodir com qualquer peido!”

(Aí não teve jeito. Foi gargalhada geral no Bar do Manéu)

Mas Fatiminha não perdeu a pose e continuou.
“Como uma cidade dessa vai querer bancar jogos da Copa do mundo? Uma cidade sem segurança. Sem Polícia Civil e, se tem, foi desarticulada na época da ditadura porque em Salvador só vale a PM. Olha no Carnaval. Pra cada policial civil na rua tem 670 policiais militares truculentos.”

(Bom, aí eu tenho que concordar. Quando eu estava no Carnaval e vinham aqueles PMs sinistros com cassetete na mão, cutucando quem estivesse na frente deles, eu sempre olhava pro chão pra ver se ninguém tinha se cagado nas calças...)

Dá-lhe Fatiminha!

“Com uma greve da PM, a bandidagem tá à vontade na capital baiana. E vejam vocês. Imaginem. Só imaginem. Imaginem se Salvador tivesse um, eu disse um, Complexo do Alemão antes da ocupação, com a bandidagem dando tiro a torto e a direito. Hein? Me digam? Como ia ser?

Antenor pegou a deixa e mandou o recado com a música de um baiano ilustre:

Eu vou pra Maracangalha
Eu vou
Eu vou de chapéu de palha
Eu vou...

Quá, quá, quá!!! O bar entrou em delírio com a sacada do Antenor. Alguém pegou a baianinha no colo e deu-lhe um beijinho na testa. Aplausos, assovios.

Daqui do meio desse fuzuê, não sei se o Manéu vai me escutar, mas vou tentar: Manéu, solta uma gelada e uma linguinha com cebola!



LAERTE E O WC


Em mais um final de tarde chuvoso no Rio – que verão mais esquisito... - Demerval chega no Bar do Manéu e, com sua voz de barítono profundo e sotaque característico, declara: Ô xente, tá tudo mudado!
E levanta pra todo mundo ler a primeira página do jornal do dia. Não sei se era O Dia ou A Noite...

Eulália, com olhar triste, comenta: Nossa, que tragédia... Teve sobreviventes?
E Demerval, que não é nada sentimental, mandou na lata: Que porra de desastre! Eu tô falando disso aqui, ó! E apontou pruma notícia com direito a foto e tudo.

Vamos explicar. Demerval é um baiano arretado do Recôncavo que, segundo a lenda, seu avô comandava a volante que matou Lampião. Se o cara usa camisa vermelha, pra ele é viado. Mulher sozinha em bar é prostituta. E homem não beija outro nem em despedida de velório, mesmo que a outra parte esteja esticada e durinha no caixão.
Ele seria um homofóbico grau nove. Só não é grau dez porque, falam as más línguas, num dia de bebedeira incondicional, Demerval confessou que já tirou as gordurinhas de umas rodelas de linguiça com garfo e faca. E nesse dia, aos prantos de bêbado, acrescentou: Isso é coisa de boiola...

Muito bem. Vamos em frente. A notícia que ele trazia era sobre a reivindicação do cartunista Laerte em querer frequentar os banheiros femininos.
Laerte, desenhista da safra de Angeli e Glauco e muitos outros, criador de personagens inesquecíveis como Os Piratas do Tietê, resolveu se vestir de mulher e assumir essa postura. São os chamados crossdresser, mas Laerte, nacionalista, se diz travesti mesmo.

Continuando. Demerval deu uma bolacha no jornal e bradou: Pode uma coisa dessa?

A discussão levantou labaredas de paixão.

Moreirinha questionou: Ele é operado? Jogou fora o bilau? Diante da negativa, ele mandou: Se é assim, tem que valer pra todo mundo! Banheiro feminino tem que ser liberado pra qualquer homem!

Público ou privada? Perguntou o irônico Robertinho, arrancando risos e assovios.

Antenor, com olhar de mormaço, abraçado ao seu violão e cigarrinho no canto da boca, já se imaginou num banheiro feminino jogando um “psilone” em algum ouvidinho desprevenido: Não liga não meu amor, eu só tô aqui pra lavar as mãos pra tirar o resto de perfume da minha ex-amada. Tens alguma coisa pra fazer hoje à noite?

Moreirinha, com sua colocação, jogou gasolina na fogueira. E tome falatório.

Magnólia, uma manicure do Irajá, sapecou: Ih, quem vai gostar é a minha colega lá do salão. Ela era Paulão, sabe, mas depois que colocou bundão, uns peitões e fez alisamento...hummm...a metida só quer ser chamada de Priscila Gabrielle.

Manéu, solta um rabo de galo pra comemorar, pediu Zé Mão no Chão e o português retrucou: Sai fora, ô gajo, aqui o galo não solta o rabo, não! Gargalhada geral.

Jaudério, o massagista que nas horas sem cliente é assistente de um consultório dentário em Del Castilho, não aguentava mais de tanto rir daquela história toda e sempre pontuava cada colocação com um: Assim não dá...assim não dá...vocês querem me matar de tanto rir.

No auge da discussão, Horácio, que sabe dar nó de gravata porque tem um namorado executivo, levantou e falou com o dedo em riste: E daí? E daí?

Antenor, com seu violão de sete cordas afinado em lá e com a sua voz de caverna, não perdeu a deixa e já encaixou um famoso samba-canção do Miguel Gustavo:

Proibiram que eu te amasse
Proibiram que eu te visse
Proibiram que eu saísse
Ou perguntasse a alguém por ti

Proíbam muito mais
Preguem avisos
Fechem portas
Ponham guizos
Nosso amor perguntará:
E daí, e daí?

O bar todo, brindando, terminou com um tremendo lalari-larará.




O LIVRO DO BONI


Fazia a faxina anual na minha estante quando, de repente, caiu um livro bem no dedão do meu pé direito. O livro era grosso. Era o Livro do Boni. Até chequei a capa duas vezes pra ver se não tinha quebrado nenhum dos dentes do Boni, tamanha foi a queda...O meu dedão inchado, tudo bem, mas restaurar um daqueles dentes tão perfeitos da capa do livro, eu teria que empenhar minhas três fazendas e ainda teria que vender meu Lamborghini para o fotógrafo Antonio Guerreiro refazer a foto.

No Natal é a única época do ano em que o Bar do Manéu fica meio às moscas. Aliás, até elas ficam meio tristes por falta de clientes pra provocar e levar de volta alguns tabefes.
Uns clientes ficam em casa, fingindo que têm família pra comemorar o nascimento de “Nosso Senhor Jesus Cristo que morreu na cruz para nos salvar...”, como diz um pedacinho do Dia da Criação do maior poeta/pinguço do Brasil, Vinícius de Morais. Outros, realmente, vão comer castanhas com filhos e agregados. E têm aqueles que viajam pra Ribeirão Preto, como foi o meu caso. Trouxe de lá, misturado ainda na saliva, o gosto de quitutes maravilhosos de uma ceia feita no capricho pela dona Inês e, debaixo do braço, de presente, bem colado ao sovaco, O Livro do Boni. Aquele lá de cima que caiu no meu dedão.

Aproveitei que nessas semanas de entressafra o Bar do Manéu estava meio vazio, escolhi uma mesa no cantinho, pedi uma cachacinha mineira, torresminho e parti pra dentro do livro.
Quando ainda estava na parte “... e aí eu corria entre os laranjais da fazenda do meu avô...” - toda biografia começa assim- sentou-se ao meu lado, Sassá, o homem mais feio do Velho Oeste, e com um humor ferino e certeiro. Ele mesmo se auto-sacaneia. Quando algum bebê de colo chora ao seu lado, ele diz: Ih, ele tá me reconhecendo...tá chorando de medo.

Sassá lê de tudo e no original. E bota tudo nisso. Ele vai desde cópias confiscadas de Ulisses do James Joyce, nos Estados Unidos, passa por Nietzsche, destrincha Machado, sabe quase tudo de Shakespeare de cor e por aí vai. Nem bula de remédio escapa. Se alguém fala que tá borrifando Cepacaina na garganta, ele ataca: Presta atenção, não come esse ovo colorido aí do bar porque as gorduras presentes no leite e nos ovos cortam o efeito do remédio. Se o Sassá falou pode ter certeza que isso tava lá na bula.

Mas então, ele pegou no meu ombro daquele jeito dele e disse: Já li. Eu fui logo falando: Não me conta nada. E ele: Pode ficar tranquilo que o mocinho não morre no final...Não pude evitar um sorriso e uma curiosidade. E perguntei o que ele achou. Ele, com aquela ironia fina de agulha de acupuntura, falou, depois de tomar um gole da minha cachaça: Olha, parece agradecimento público de baiano. Fala de todo mundo com nome e sobrenome, senão não vai comer caruru no ano que vem... Aí eu evoluí de um sorriso pra gargalhada.

Conheci pessoalmente o Boni em 1980. Eu morava em Nova Iorque e recebi um convite para a cerimônia de entrega do Prêmio Salute, concedido à Rede Globo pela "International Council of the National Academy of Television, Arts and Sciences”, dos Estados Unidos, devido à qualidade dos programas por ela produzidos. Era um jantar de gala e, por coincidência ou sei lá porque, minha mesa ficava próxima a dele. Nos cumprimentamos e só. Duvido que ele tivesse me reconhecido, mesmo eu tendo participado de um programa da TV Globo que na época era de uma audiência absurda, a ponto de bater novelas e Jornal Nacional. Era um programa de humor, chamado o Planeta dos Homens. Ou mesmo que ele tivesse um lapso de lembrança da minha participação na novela Água Viva, como namorado da Estela, personagem interpretada pela Tonia Carrero. Não importa.
Mas o que mais estranhei nesse evento em NY foi o discurso do Roberto Marinho ser em português. Eu pensei: Caramba, o dono de uma rede gigantesca de TV não sabe falar inglês?

Voltando ao bar. À nossa mesa, chegou bem de mansinho a Mariana. Mariana Só Bebe Chope. Esse é o apelido dela nas internas. Ela é toda conectada, sempre atualizando suas mensagens de e-mail no celular.
E Mariana, jovem e perspicaz, pediu um chope, entrou na conversa e no segundo gole, segurando o livro, perguntou: Quem é esse cara com dentinhos de milho? Explicamos e ela sentenciou: Televisão já era! Eu e Sassá nos entreolhamos. Ela, num muchocho, continuou: Ainda bem que esse cara saiu fora antes de ouvir o estrondo final...Televisão é pura bobagem. Só assistem os viciados. É um veículo ultrapassado. Hoje a comunicação é outra, entende? A televisão vai de braço dado com o cinema pro calvário. Após esse vaticínio, levantou-se e foi trocar idéias com Mirtinha, que tinha acabado de chegar e sentado no balcão. Um dia eu falo da Mirtinha pra vocês.

Será? Será que Mariana tá com a razão? Sassá citou Marshall McLuhan, que foi um dos precursores na discussão da mídia, com seu famoso livro “O Meio é a Mensagem”, nos anos 60. Ele foi também um dos responsáveis do conceito de Aldeia Global, que simplificando, dizia que progresso tecnológico reduziu todo o planeta à mesma situação que ocorre em uma aldeia, e que a comunicação seria na verdade uma intercomunicação diretamente com qualquer pessoa. Ele ainda cravou a televisão como o meio de estabelecer essa comunicação em nível mundial.

Mariana, que tinha voltado pra buscar seu chope esquecido na nossa mesa e pegou o rabicho da conversa, falou: Tá vendo? Foi o que eu disse. Só que hoje a comunicação é de pessoa pra pessoa.
As pessoas podem criar seus próprios conteúdos. Não precisamos da televisão pra criar isso. Deu uma piscadela para mim, levantou o boné do Sassá, deu uma beijoca na sua careca e voltou para o papo com a Mirtinha.

Eu, que tinha avançado na biografia até a página 60, onde ele diz: “em meados dos anos de 1960 o Scatena me perguntou...” olhei para o livro do Boni, como se estivesse vendo os Manuscritos do Mar Morto. Sassá, percebendo minha decepção, lascou: Não liga, não! Imagine-se sentado num café Pigalle di Torvo em Roma, lendo as aventuras de César na época do Império Romano. Não consola, eu sei, mas tem seu charme.